Otávio Frias Filho, da Folha, publicou editorial sobre o tema. Leia abaixo:
Cotas sem sentido - EDITORIAL FOLHA DE SP
O governo Dilma Rousseff ganhou aplausos, em especial nos círculos militantes, com a adoção do sistema de cotas raciais em universidades federais --e gostou. Iniciativas semelhantes ameaçam multiplicar-se por outras esferas.
A administração propõe agora projeto de lei que reserva a negros 20% das vagas em concursos federais. Dois deputados petistas apresentaram uma proposta de emenda constitucional que estabelece cotas até no Legislativo.
Esta Folha se opõe à utilização da cor da pele como critério para o que quer que seja. Apoia, entretanto, que se usem categorias sociais para definir a alocação de determinados recursos públicos, como lugares em universidades.
A maior proporção de negros e pardos entre os mais pobres garante que a cota social beneficiará esses grupos, sem a necessidade de o Estado incidir numa classificação racial dos cidadãos, que mais reforça do que dissolve barreiras.
As iniciativas para estender as cotas ao mercado de trabalho e ao Parlamento pecam não apenas por disseminar e naturalizar ainda mais a ideia de raça na sociedade como também por misturar lógicas que são muito distintas.
Faz sentido reservar vagas em universidades porque a educação tem o propósito explícito de tentar nivelar as pessoas. Um de seus objetivos é assegurar que todos os cidadãos, independentemente de origem social e acidentes de percurso, possam disputar em condições de igualdade as oportunidades que lhes serão oferecidas.
Não é absurdo, assim, manipular as regras de admissão universitária para tentar conciliar o ideal de equidade com outras metas da educação superior, como a formação dos melhores quadros possíveis.
Não é tão simples transpor esse princípio para o Poder Legislativo e para os concursos públicos. Nessas atividades, a lógica de promover a igualdade não se impõe como prioritária.
Quando o Estado contrata um servidor, espera-se que seja o mais qualificado. Quando um eleitor escolhe seu representante, deve fazê-lo tão livremente quanto possível. Os princípios da seleção nesses casos devem ser a eficácia administrativa e a liberdade de escolha.
O racismo é uma chaga social que o Estado brasileiro tem obrigação de combater. Deve fazê-lo, entretanto, com as ferramentas adequadas, sem comprometer ou enfraquecer demais outros objetivos relevantes do poder público.
O tema também foi abordado por Reinaldo Azevedo, que falou em debate delinquente (leia aqui), e por Demétrio Magnoli. Leia abaixo:
O Brasil e a ‘nação diaspórica’ - DEMÉTRIO MAGNOLI
A gloriosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece cotas raciais na representação parlamentar do povo. Ignorando tanto a Constituição quanto a Justiça, a CCJ aprova qualquer coisa que emane de um grupo de interesse organizado, o que é um sintoma clamoroso da desmoralização do Congresso. Nesse caso, viola-se diretamente o princípio fundamental da liberdade de voto. Por isso, a PEC de autoria dos petistas João Paulo Cunha (SP) e Luiz Alberto (BA) provavelmente dormirá o longo sono dos disparates nos escaninhos da Câmara. Mas ela cumpre uma função útil: evidencia o verdadeiro programa do racialismo, rasgando a fantasia com que se adorna no debate público.
O argumento ilusionista para a introdução de cotas raciais no ingresso às universidades residia na suposta desvantagem escolar prévia dos “negros” — algo que, de fato, é uma desvantagem prévia dos pobres de todas as cores de pele. A fantasia da compensação social começou a esgarçar-se com a extensão das cotas raciais para cursos de pós-graduação, cujas vagas são disputadas por detentores de diplomas universitários. A PEC aprovada na CCJ comprova que as políticas de raça não são motivadas por um desejo de corrigir distorções derivadas da renda. O racialismo exibe-se, agora, como ele realmente é: um programa de divisão dos brasileiros segundo o critério envenenado da raça.
De acordo com a PEC, na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas estaduais, será reservada uma parcela de cadeiras para parlamentares “negros” equivalente a dois terços do percentual de pessoas que se declaram pretas ou pardas no mais recente censo demográfico. As bancadas “negras” não serão inferiores a um quinto ou superiores à metade do total de cadeiras. Os deputados proponentes operam como despachantes de ONGs racialistas e expressam, na PEC, a convicção política que as anima: o Brasil não é uma nação, mas um espaço geopolítico no qual, sob a hegemonia dos “brancos”, pulsa uma “nação africana” diaspórica. A presença parlamentar de bancadas “negras” representaria o reconhecimento tácito tanto da inexistência de uma nação brasileira quanto da existência dessa nação na diáspora.
Os eleitores, reza a PEC, darão dois votos: o primeiro, para um candidato de uma lista geral; o segundo, para um candidato de uma lista de “negros”. A proposta desvia-se, nesse ponto, de uma férrea lógica racialista. Segundo tal lógica, os eleitores deveriam ser, eles também, bipartidos pela fronteira da raça: os “negros” votariam apenas na lista de candidatos “negros” e os demais, apenas na lista geral. A hipótese coerente não violaria o princípio da liberdade de voto, pois estaria ancorada num contrato constitucional de reconhecimento da nação diaspórica. Como inexiste esse contrato, os racialistas optaram por um atalho esdrúxulo, que escarnece da liberdade de voto com a finalidade de, disfarçadamente, inscrever a nação diaspórica no ordenamento político e jurídico do país.
Nações não são montanhas, rios ou vales: não existem como componentes do mundo natural. Na expressão certeira de Benedict Anderson, nações são “comunidades imaginadas”: elas podem ser fabricadas na esfera da política, por meio das ferramentas do nacionalismo. A PEC não caiu do céu. A “nação africana” na diáspora surgiu no nacionalismo negro do início do século XX com o americano W. E. B. Du Bois e o jamaicano Marcus Garvey. No Brasil, aportou cerca de três décadas atrás, pela nau do Movimento Negro Unificado, entre cujos fundadores estava Luiz Alberto. No início, a versão brasileira do nacionalismo negro tingia-se com as cores do anticapitalismo. Depois, a partir da preparação da Conferência de Durban, da ONU, em 2001, adaptou-se à ordem vigente, aninhando-se no colo bilionário da Fundação Ford. “Afro-americanos”, nos EUA, e “afrodescendentes”, no Brasil, são produtos identitários paralelos dessa vertente narrativa.
O acento americano do discurso racialista brasileiro é tão óbvio quanto problemático. Nos EUA, o projeto político de uma identidade negra separada tem alicerces sólidos, fincados nas leis de segregação que, depois da Guerra de Secessão, traçaram uma linha oficial entre “brancos” e “negros”, suprimindo no nascedouro a possibilidade de construção de identidades intermediárias. No Brasil, em contraste, esse projeto choca-se com a noção de mestiçagem, que funciona como poderoso obstáculo no caminho da fabricação política de raças. A solução dos porta-bandeiras do nacionalismo negro é impor, de cima para baixo, a divisão dos brasileiros em “brancos” e “negros”. As leis de cotas raciais servem para isso, exclusivamente.
As diferenças históricas entre EUA e Brasil têm implicação direta na gramática do discurso político. Lá, o nacionalismo negro é uma proposição clara, que provoca um debate público informado — e, quando Barack Obama se define como mestiço, emerge uma resposta desconcertante no cenário conhecido da polaridade racial. Aqui, os arautos do nacionalismo negro operam por meio de subterfúgios, escondendo-se atrás do pretexto fácil da desigualdade social — e encontram políticos oportunistas, juízes populistas e intelectuais preguiçosos o suficiente para conceder-lhes o privilégio da prestidigitação.
“Tirem a máscara!” — eis a exigência que deve ser dirigida aos nossos racialistas, na hora em que apresentam a PEC do Parlamento Racial. Saiam à luz do dia e conclamem o Brasil a escrever uma nova Constituição, redefinindo-se como um Estado binacional. Digam aos brasileiros que vocês não querem direitos iguais e oportunidades para todos numa república democrática, mas almejam apenas a condição de líderes políticos de um movimento racial. Vocês não têm vergonha de ocultar seu programa retrógrado à sombra da persistente ruína de nossas escolas públicas?